A preocupação com a memória seja ela lembrança ou esquecimento bem como com a construção e afirmação de identidades, ou ainda, a preocupação com a salvaguarda do patrimônio cultural são todas insurgências da modernidade. Essa questão destaca-se na América Latina devido ao modelo de modernidade aqui desenvolvido, com parâmetros europeus, que, conforme Canclini (2001), deu início a um modernismo cheio de vigor, mas que, em contrapartida, submeteu os povos latino-americanos a uma modernização deficiente. Para Canclini, as rupturas provocadas pela rápida urbanização e pelo crescente desenvolvimento industrial insinuaram um culto ao que é moderno. Esse processo acelerou o passar do tempo e incentivou o progresso, deixando de lado aspectos do patrimônio cultural, criando um abismo entre o presente e o passado, na medida em que tal aceleração apagou muitos dos rastros do passado.
Como forma de suprimir esse lapso entre o passado e o presente, isto é, criar laços de pertencimento e de identidade, constroem-se então “lugares de memória”, ou seja, objetos ou convenções carregados de uma vontade de memória. São esses aspectos que buscamos tematizar nesta décima edição da Mostra Cinema Popular Brasileiro, a partir da exibição de filmes, da realização de oficinas de vídeos documentários feitas por estudantes da rede pública local com a comunidade de Lumiar, 5º distrito de Nova Friburgo (RJ), de palestras e mesas de debate. Queremos aprofundar a discussão sobre memória e história, memória e comunicação, e memória e identidade, recorrendo ao cinema como ferramenta.
O lugar da memória
A ameaça do esquecimento ronda as lembranças na contemporaneidade, levando à obsessão pelo registro de memórias, uma vez que a modernidade tem o anseio por uma identidade coletiva e vai buscar a sua construção em vestígios do passado. Pierre Nora (1993, p. 7) diz que “[…] fala-se tanto em memória porque ela não existe mais.”. O que resta são os “locais de memória porque não há mais meios de memória”. A memória precisa ser transformada em algo tangível, palpável, traduzida em uma materialidade capaz de se opor a sua essência dicotômica que transita entre a lembrança e o esquecimento.
Dentro desse contexto, Walter Benjamin (1986), no seu ensaio de 1936, intitulado O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, considera que a tradição, compreendida como a transmissão de valores de geração para geração por meio da narração oral da história, perdeu-se. Segundo ele, o narrador está cada vez mais distante de nós e “[…] a arte de narrar está em vias de extinção […]” (1986, p. 197), uma vez que a troca de experiência tem perdido seu valor gradativamente e a responsável por isso é a difusão da informação, que, para Benjamin, já chega acompanhada de explicação, não é preciso refletir sobre ela. E como a informação só é valorizada quando é nova, ela se torna rápida e autoexplicativa, colaborando para sua desmemorização. Outro aspecto que o autor aborda e que contribui para entendermos o fim da narração é o desaparecimento do dom de ouvir, não há mais tempo para isso – “[…] ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve uma história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido […]” (BENJAMIN, 1986, p. 205), fazendo com que a memória, considerada pelo autor como a musa da narrativa, esvaia-se.
Neste sentido, para Nora (1993), não há mais “sociedades-memória”, como também não há mais “ideologias-memórias” que davam pistas dos elementos do passado que deveriam ser assimilados pelas novas gerações. Segundo o autor, a aceleração do tempo, ou dos tempos, atropelou a memória dando lugar para o que chamamos de atualidade, abrindo espaço para uma memória historicizada, “[…] que é o que nossas sociedades condenadas ao esquecimento fazem do passado […]” (NORA, 1993, p. 8).
Mas para que possamos discorrer sobre a memória, é preciso entender a sua diferença em relação à história e a sua íntima ligação, conforme ressalta Nora (1993, p. 9): “Desde que haja rastro, distância, mediação, não estamos mais dentro da verdadeira memória, mas dentro da história.”. A memória é vivida, é afetiva, está viva nas pessoas, nos grupos, é dinâmica, mantém-se pelo culto, pelas tradições, é absoluta, pois há nela elementos que são inacessíveis. Por outro lado, a ameaça do seu desaparecimento cria a necessidade de fixá-la em formas escritas, em narrativas, surge a necessidade de materializá-la para comprovar o passado. Assim, já não é mais memória, mas história, portanto, representações do passado. Nestes termos, segundo o autor, a necessidade de memória é uma necessidade da história, “[…] para dar ao mais modesto dos vestígios, ao mais humilde testemunho a dignidade virtual do memorável.” (NORA, 1993, p. 14).
Para o autor, não existe mais um “homem-memória”, mas sim “lugares de memória”. Esses lugares vão desde os mais concretos – os materiais e os funcionais -, até os mais abstratos – os simbólicos -, podendo coexistir em diversos graus.
Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea, e de que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. (NORA, 1993, p. 13). Esses lugares podem ser materiais ou imateriais. São lugares carregados de uma vontade de memória, pois não é a memória em si, mas aquela apropriada, ressignificada, transformada em fonte para e pela história. Nestes lugares de memória, as pessoas se reconhecem, se identificam, criando um sentimento de pertença e de formação de identidade. Uma forma de sentir segurança em meio à volatilidade do mundo moderno e de garantir que a memória não se perca para sempre nas linhas do tempo passado. Bauman (2001, p.195) diz que na modernidade líquida os laços afetivos e sociais estão fragilizados e são transitórios, acelerando as transformações sociais, onde maleabilidade, fluidez e flexibilidade governam o novo tempo. Essas mudanças provocam transformações na própria constituição das identidades, que se tornam voláteis e são oferecidas como um produto a ser consumido, rompendo, muitas vezes, os laços com as tradições e com o passado. Por isso, a necessidade do homem moderno em “[…] acumular religiosamente vestígios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que foi […]” (NORA, 1993, p. 15), para que tenha provas do passado.
No entanto, ao assumir uma forma material, a memória se democratizou. Enquanto que o seu registro estava sob controle somente de grandes famílias, da Igreja e do Estado, nos tempos clássicos, como salienta o autor, hoje ela é produzida por qualquer pessoa: “produzir arquivo é o imperativo da época.” (NORA, 1993, p. 16).
Nora coloca que os “lugares de memória” compreendem “ […] o máximo de sentido num mínimo de sinais […]” (1993, p. 22) e é a partir deles que as identidades também se constituem. Elas recuperam vestígios do passado para formar seus alicerces, modelando-os de acordo com o contexto histórico e social em que se encontram. Castells (2006) define a identidade como fonte de significado em função do processo de autoconstrução e individuação que envolve, e das experiências de um povo. Isto é, a identidade é uma construção social que tem por base um atributo ou um conjunto de atributos culturais que se inter-relacionam. E essa construção “[…] vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, e pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso.” (CASTELLS, 2006, p. 23).
Para o autor, a construção da identidade sempre se dá por meio de relações de poder. A partir disso, ele propõe três formas de constituição da identidade: legitimadora, de resistência e de projeto, estando todas estritamente relacionadas ao contexto social e às formas de representação. Assim, a identidade legitimadora é aquela mantida pelas instituições constitutivas dominantes da sociedade, como a escola, a igreja e o Estado, cuja finalidade é a de estender e racionalizar a sua dominação sobre os atores sociais. A identidade de resistência é formada por atores que se encontram em posições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela sociedade, que criam sua própria lógica como forma de sobrevivência, opondo-se à dominação e aos seus princípios usuais. Já a identidade de projeto constitui-se por meio de atores sociais que se utilizam de algum bem cultural ao seu alcance para construir uma identidade de forma a redefinir sua posição na sociedade, podendo transformar a estrutura social que os cerca.
A busca de identidade sempre se dá com vistas ao passado, carregando traços do legado histórico, tanto individual quanto coletivo do local onde se vive. Por sua vez, uma das formas de constituir a identidade cultural dos sujeitos e, até mesmo, de uma população na modernidade é por meio da recuperação do patrimônio histórico. Para Canclini, “o interesse contemporâneo do patrimônio tradicional reside em benefícios ‘espirituais’ difíceis de ponderar […]”, mas que representa “a última esperança de ‘redenção’.” (CANCLINI, 2001, p. 58, tradução nossa).
A redenção é como se a salvação da modernidade estivesse sempre no passado, no culto às tradições. O tempo que passou é sempre visto como “puro”, uma época em que os processos eram mais simples e mais fáceis de resolver. O autor diz que o patrimônio é teatralizado num “[…] esforço por simular que há uma origem, uma substância fundante em relação a qual deveríamos atuar hoje.” (CANCLINI, 2001, p. 159, tradução nossa).
Mais do que resgatar, preservar e difundir, o patrimônio deve ser entendido enquanto processo, segundo Canclini, ao invés de preocupar-se em manter “puros” os objetos, como se a representação tida deles fosse uma verdade absoluta. O autor defende a reformulação do patrimônio levando em conta seus usos sociais, não apenas a recuperação, uma vez que ele interessa à sociedade como um todo, principalmente “[…] setores cuja identidade costuma ser trocada por usos modernos da cultura […]” Canclini fala em patrimônio enquanto reconstrução de uma verossimilhança histórica para dar base ao presente. (CANCLINI, 2001, p. 193, tradução nossa).
E nesse processo, “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar a identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia.” (LE GOFF, 1982, p. 57). Trata-se de uma frenética busca por identidades coletivas como forma dos sujeitos afirmarem o seu lugar no mundo. Assim, os “lugares de memória” procuram recuperar e manter vivo um passado que se encontra ameaçado pela vivência do eterno presente, prolongado, principalmente, pelos meios de comunicação.
A memória atualiza o passado já que sua leitura é sempre com base nas representações, uma vez que não há como saber se o que ela recupera é a verdade do passado. E essa ressignificação é operada tanto por memórias coletivas quanto individuais, distanciando-se uma da outra e, muitas vezes, se confundindo numa luta por identificação e poder. Pollak salienta que a memória sempre busca definir sentimentos de pertença e fronteiras sociais, e esta “[…] referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis.” (POLLAK, 1989, p. 9).
Ao falar em memória coletiva, Pollak ressalta os quadros e pontos de referência que os grupos ativam para delimitar suas experiências sobre o passado, conforme seus interesses, introduzindo outro termo para refletirmos sobre a relação entre memória e história: o de memória enquadrada.
É nesse movimento de enquadramento que o filme surge, para o autor, como a melhor forma de “[…] captar as lembranças confeccionadas em objetos de memória de hoje […] ele se dirige não apenas às capacidades cognitivas, mas capta as emoções.”. Esse registro enquadra a memória, pois ela necessita ter referências, limites, uma vez que não é construída arbitrariamente. Enquadrar a memória é uma contínua ressignificação do passado, conforme os interesses de quem a faz e em função do presente e do futuro (POLLAK, 1989, p.10).
É neste contexto que os mecanismos de registro audiovisual surgem como valiosos instrumentos para satisfazer o desejo contemporâneo pelos “lugares de memória”, consagrando, na atualidade, uma “[…] memória intensamente retiniana e poderosamente televisual […]”, como destaca Nora (1993). O que vem ao encontro do que Baitello Jr. (2001) reconhece como imperativo na contemporaneidade, a conservação da presença através de imagens e do som, ou em outros termos, a criação de um eterno tempo presente.
Dentro dessa problemática, Gagnebin (2006, p. 44) nos remete aos rastros do passado que, segundo ela, “[…] inscreve a lembrança de uma presença que não existe mais e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente.”. Assim, o rastro ou o registro cria essa relação instável entre o estar presente e o estar ausente, típico das representações.
O estar ausente, passado desaparecido, pode irromper a qualquer instante, e é o que caracteriza a memória involuntária, carregada de afetividade e emoções (SEIXAS, 2001). É sempre algum fato do cotidiano, alguma sensação, alguma visão ou barulho, enfim, que serve de estopim para que o passado venha à superfície, de forma espontânea, mas como num lampejo, logo se esvai. Diferente da memória voluntária, que é superficial e corriqueira, constituída de lembranças que podem ser acessadas naturalmente. Os dois tipos de memória são matéria-prima para as produções audiovisuais, em especial para os documentários, mas é a memória involuntária que é cobiçada por estas produções preocupadas em combater o esquecimento.
A memória involuntária pode ser capturada pela lente de uma câmera, seja no momento em que o entrevistador instiga o personagem social a contar suas recordações ou fazer alguma ação que, por acaso, é capaz de trazer à tona uma memória afetiva capaz de ser narrada, expressa em seu semblante, em algum movimento corporal ou, até mesmo, no seu silêncio. Fragmentos de memória que insistem em transpor as barreiras do inconsciente em um exercício de atualização do passado.
Nesse sentido, o audiovisual surge como uma resposta à perda da experiência na modernidade, a que se referiu Walter Benjamin em 1936. Vivemos “um tempo saturado de ‘agoras’”, para parafrasear o autor, em que o passado exige um compromisso do presente para escapar à denegação. Ele clama para ser atualizado, reconstruído, ressignificado. Portanto, diante de um século marcado pelo imperativo das imagens (sejam elas estáticas ou em movimento), acreditamos que é preciso voltar a nossa atenção para o cinema que tem se apresentado para diversos grupos sociais como um valioso dispositivo para os rearranjos da memória.
Referências bibliográgicas
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CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estrategias para entrar y salir de la modernidad. Buenos Aires: Paidós, 2001.
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